Um crime que aterrorizou Bauru, no interior de São Paulo, há cinco décadas ainda reverbera entre seus moradores. Mara Lúcia Vieira, de apenas 9 anos, encontrada no banheiro de uma casa abandonada depois de quatro dias desaparecida, após ter saído para ir à escola. Violentada, estuprada e assassinada. Através de elementos documentais, o grupo bauruense “Protótipo Tópico” criou o espetáculo “Talvez isso não seja totalmente preciso, mas aqui está”, que será apresentado nesta quinta-feira, em Caraguatatuba (19/5), e na sexta-feira (20/5), em Ubatuba, às 20h. A peça revisita através de um olhar poético lembranças e cicatrizes deste crime.
A brutalidade do crime ainda desperta incompreensão e revolta. Não há culpados. Ninguém sabe quem violentou e assassinou a criança. Mas, sobre a história, pairam boatos e hipóteses que nos revelam enquanto sociedade.
Com direção de Marcelo Soler, da Cia. Teatro Documentário (São Paulo) e preparação de atores de Georgette Fadel, o grupo traz uma inquietante leitura da morte de Mara Lúcia que leva o público a se questionar sobre qual é o espaço, concreto e subjetivo, que a barbárie nos leva. Criado em 2019, o documentário cênico também questiona todas as possibilidades que esta criança poderia ter vivido.
Assim, aos atores e moradores de Bauru sobra um apanhado de ‘Talvez’. Talvez ele seja o culpado pelo assassinato. Talvez esse seja o motivo de um crime tão cruel. Talvez Mara Lúcia estivesse viva se não tivesse ido à escola naquele dia. Talvez ela teria se casado, tido filhos se ainda estivesse viva. E muitos outros “Talvez”.
A entrada é gratuita e tem classificação indicativa de 14 anos.
Oficina: “Lugar memória: parâmetros do real que moldam a ficção”
O grupo teatral “Protótipo Tópico” também realizará uma oficina gratuita paralela às apresentações, que busca despertar novos olhares para os problemas sociais, dividindo a experiência de um fato que não pode ser esquecido para que não seja reproduzido, e que possibilitam também o despertar de um lado artístico nos participantes.
A oficina “Lugar memória: parâmetros do real que moldam a ficção se baseia em um crime brutal, tema da peça teatral acima citada, para estudar o discurso artístico. Dessa forma, o papel do elenco vai além da apresentação da peça: os atores assumem a função de estimular o interesse do público para a interação artística e a produção, tornando a experiência um ato vívido.
Em Caraguatatuba, a oficina será realizada na quinta-feira, às 15h, no Salão Inferior do Teatro Mário Covas. Já em Ubatuba, a oficina será na sexta-feira, também às 15h, na sala 7 do Teatro Municipal. As inscrições podem ser feitas no local do evento, com limite de 25 pessoas.
O intuito é dividir experiências e proporcionar uma vivência sensorial, que traz sobre o viés artístico os diferentes aspectos sociais da violência que são presenciadas por eles em suas rotinas de trabalho.
Brutalidade em cena: sutilezas de uma vida interrompida
Uma vida tirada brutalmente e, junto com ela, todas as possibilidades que esta criança poderia ter vivido. A única certeza é a coragem de um grupo de atores em revirar esta história e questionar a falta de solução para este crime.
Quem viveu à época ainda se lembra de Mara Lúcia. Mas apenas os mais próximos recordam-se da menina para além da violência. Eliana Cerigatto era a amiga mais próxima, elas cantavam, brincavam de bonecas e se divertiam no balanço que existia no quintal da casa dos pais de Mara. Eliana é mãe de Fábio Valério, um dos atores do espetáculo. As histórias sobre a garota foram ouvidas inúmeras vezes pelo filho, sendo este um dos disparadores para a construção deste trabalho.
Juntos, Andressa Francelino e Fábio Valério, atores do Grupo Protótipo Tópico, entrevistaram jornalistas e pessoas que viveram em Bauru na época do crime. Eles esmiuçaram os fatos e boatos e se debruçaram durante meses na história, ao lado do diretor do espetáculo Marcelo Soler, em busca de uma construção dramatúrgica que não abordasse apenas a violência, mas as sutilezas de uma vida interrompida tão precocemente.
A obra propõe inúmeras reflexões sobre a violência humana, sobre os reflexos da desigualdade social e a espetacularização por parte da imprensa na época. Tudo muito bem articulado pelos olhares sensíveis dos atores e do diretor. Um aprofundamento em questões viscerais que resistiram à passagem do tempo. Um teatro que sequestra a realidade e a transfere para o palco.
Além disso, para contribuir com esta construção dramatúrgica, o grupo buscou inspiração também na literatura, em um mergulho na obra Memórias do Subsolo, do russo Fiódor Dostoiévski, que traz em seus textos uma espécie de sequência de versos cênicos que transbordam a atmosfera de insuficiência frente ao inexplicável, assim como se sentiram os artistas ao se depararem com o caso Mara Lúcia.
Visando um refinamento poético e a ampliação das possibilidades artísticas, estéticas e políticas, o grupo convidou o diretor e dramaturgo Marcelo Soler, um dos precursores do teatro documentário no país, para assinar a direção do espetáculo, e a atriz, diretora e preparadora Georgette Fadel para a orientação e preparação dos atores acerca da encenação, ambos da cidade de São Paulo. Com isso, a produção do espetáculo “Talvez isso não seja totalmente preciso, mas aqui está” foi executada de modo colaborativo, onde artistas e diretor estiveram engajados na sua criação.
Além da dramaturgia poética, o trabalho apresenta um viés político, já que a vítima pertencia a uma família simples e os suspeitos eram de famílias ricas e tradicionais da cidade, o que ‘Talvez’ tenha resultado nesta não resolução do crime.
Grupo Protótipo Tópico | Oficina | 60 minutos