Pescador de Caraguatatuba preso e torturado no regime militar teve história contada no teatro por Lauro César Muniz

Neste domingo, o filme brasileiro “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, com Fernanda Torres, entre outros bons atores, concorre neste domingo(2) ao Oscar, prêmio máximo do cinema mundial, destacando a história do deputado Rubens Paiva, que desapareceu, após ser levado de sua casa por agentes da ditadura militar. No litoral norte paulista, o desaparecimento de um pescador levado por agentes de segurança, foi tema de peça teatral. O pescador foi encontrado preso no DOPS e posteriormente liberado.

Por Salim Burihan

A ditadura militar deixou marcas profundas no Litoral Norte Paulista. Muitas pessoas, entre elas, vereadores, profissionais liberais, professores, estudantes e até pescadores, foram investigados pelos órgãos de repressão naquele período.

As investigações eram iniciadas a partir de denúncias feitas por pessoas solidárias ao sistema. Muitas das denúncias ficaram apenas registradas em boletins de ocorrências nas delegacias ou nos acervos do Dops. Na época, as denúncias eram encaminhadas a seccional de polícia civil que ficava em Santos.

Tudo que era “suspeito” era denunciado. Uma vez, alguns estudantes secundaristas do Thomaz Ribeiro de Lima, em Caraguatatuba, durante uma experiência, provocaram uma explosão no laboratório de química da escola.  Os estudantes foram “caguetados” por supostamente estarem produzindo uma bomba no laboratório. Os agentes vieram conferir. Pura perda de tempo.

O assassinato de Antônio Benetazzo (Foto), aos 31 anos, pelos órgãos de repressão, ganhou destaque ao longo dos anos. A família de Benetazzo vivia em Caraguatatuba na época de sua morte. Alguns anos atrás,  Benetazzo foi homenageado em Caraguatatuba, graças a insistência de estudantes secundaristas da mesma escola que ele havia estudado. Benetazzo estudou na escola Thomaz Ribeiro de Lima.

Sobre a morte de Benetazzo, em 1971, conheci todos os detalhes através da imprensa, da Comissão de Direitos Humanos, da Anistia Internacional e dos relatos de amigos, que conviveram com ele no combate à ditadura. Fui vizinho dele em Caraguatatuba, quando seus pais tinha uma loja de gás, na rua Santa Cruz. Logo depois, a família mudou-se para São Sebastião.

Benetazzo foi jornalista, artista plástico, poeta, enfim, um pouco de tudo em sua curta passagem entre nós. Quando foi assassinado tinha apenas 31 anos. Sua história chegou à televisão e até ao cordel. Suas obras, até hoje, são destacadas em exposições na capital e interior. A história de Bene deve também chegar ao teatro e ao cinema.

Em uma cerimônia emocionante realizada no auditório da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e de Design (FAU), no dia 1º de novembro do ano passado, o estudante Antonio Benetazzo, assassinado pelo regime militar em 1972, foi homenageado com os diplomas honoríficos de arquiteto e de filósofo. Naquele dia, Benetazzo completaria 83 anos de idade.

Pescador

Uma história, no entanto, a do pescador Joaquim Romão do Nascimento, morador da praia da Tabatinga, na divisa entre Caraguatatuba e Ubatuba, preso e torturado pelos órgãos de repressão, praticamente ficou esquecida, pelo menos, em Caraguatatuba.

O caso do pescador Joaquim Romão, que foi preso como subversivo e torturado pelos órgãos de repressão fiquei sabendo apenas em 2012 e resolvi pesquisar. Achei seu Joaquim Romão, ainda vivo, com 72 anos de idade, mas bastante doente. Ele me contou a história. Tinha sido preso e sofrido algum tipo de tortura em 1964.

O pescador foi detido e preso no Dops em São Paulo, onde passou muito tempo incomunicável, acusado de subversão. Joaquim Romão tinha na época 24 anos, era casado e tinha cinco filhos.

A história é interessante. Existem algumas versões diferentes, uma delas relata que a Superintendência Política de Reforma Agrária (SUPRA) do governo João Goulart fez uma reunião com os pescadores e agricultores na região da Tabatinga para tratar da criação de uma espécie de cooperativa.

Quando foi elaborada a ata da reunião, Joaquim Romão, por ser o único que sabia ler e escrever, acabou assinando como “representante” dos cooperados. Alguns dias depois, agentes da ditadura estiveram na Tabatinga e Joaquim Romão, acabou sendo enquadrado na Lei de Segurança Nacional , levado preso, permanecendo incomunicável.

Apavorados, a maioria dos pescadores da Tabatinga, que havia participando daquela reunião, se escondeu nas matas da serra do mar por alguns meses. Temiam ser presos e levados ao Dops, como tinha ocorrido com Joaquim Romão.

O desaparecimento de Joaquim Romão deixou apreensiva toda a comunidade de pescadores. Segundo consta, alguns moradores decidiram informar o sumiço de Joaquim Romão ao delegado do DEIC, Moraes Novaes, que frequentava a região e saía de vez em quando para pescar com os pescadores caiçaras da Tabatinga.

Novaes teria localizado o pescador preso no Dops e interferido junto aos órgão de repressão para a sua liberação. Era apenas um pescador, sem qualquer envolvimento com a subversão ou política. A família de Joaquim Romão nunca processou o estado pelas supostas torturas sofridas por ele nos porões do Dops.

Jornal 

Pesquisando, descobri que a história do pescador Joaquim Romão havia sido relatada por um dos principais jornalistas brasileiros, Ewaldo Dantas, ainda durante a ditadura militar. Dantas tinha casa de veraneio em Ubatuba e se comoveu com a história do pescador supostamente considerado um “terrorista” pelos órgãos de repressão. A reportagem de Dantas, publicada na Folha de São Paulo, foi importante na soltura do pescador. Dantas morreu em 2013.

Descobri mais ainda, que a história de Joaquim Romão do Nascimento foi levada aos palcos do teatro brasileiro, em 1968, através de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros, Lauro César Muniz. “Romão, o líder”, baseado em fatos reais, narrava a trajetória de Joaquim Romão, líder comunitário da praia de Tabatinga, preso e torturado por agentes da repressão, em 1964, durante a ditadura.

A peça “O Líder” foi apresentada em junho de 1968, durante o Festival Brasileiro de Teatro, que aconteceu no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo. A peça tinha direção de Augusto Boal, cenografia de Marcos Weinstock e no elenco, nomes como Antônio Fagundes, Aracy Balabanian, Renato Consorte, Myrian Muniz e Rolandro Boldrin, entre outros.

Fotos: Gianni D’Angelo

Entrevistei Joaquim Romão, em 2012(Foto), ele estava com 72 anos e bastante adoentado.  Romão, nascido e criado no bairro do Massaguaçu, em Caraguatatuba, era casado com dona Nilza e tinha cinco filhos. Na época, conversei com ele e com vários moradores da Tabatinga. Segundo Joaquim Romão e alguns moradores do bairro, a prisão ocorreu por que “ele” e os outros pescadores e agricultores teriam assinado, sem saber, um documento de apoio ao partido comunista.

Segundo consta, estudantes de São Paulo, reuniram os moradores da Tabatinga, na escola mista do bairro e pediram para que todos assinassem um documento. Algumas pessoas, acreditavam, que era um documento para formar uma associação de moradores para alguma reivindicação, mas na verdade o documento era de adesão ou reconhecimento ao partido comunista brasileiro.

Segundo Romão e alguns moradores, uma semana depois, várias viatura e muitos policiais, agentes da repressão, “invadiram” a praia da Tabatinga, atrás das pessoas que assinaram o documento. Os policiais adentraram as casas humildes em busca dos líderes do movimento. A “busca” foi feita por 15 dias.

Após a prisão de Joaquim, os outros pescadores ficaram mais de 15 dias escondido nas matas da região, temendo, também, serem presos e levados para São Paulo. Alguns moradores afirmaram que os policiais ameaçavam que “quem não colaborasse, seria preso e levado em um barco para bem distante da costa e lá, lançado ao mar”.

Joaquim Romão, em 2012, morava no mesmo local de onde teria sido levado pelas forças de segurança do regime militar em 1964. Ele contou como foi a prisão e alegou que desconhecia o teor do documento que assinou.

“Não sabia ler e nem escrever direito, assinei achando que era alguma coisa boa, mas percebi, depois da prisão, que se tratava de coisa ruim”, disse. Ele lembra que os policiais chegaram à Praia da Tabatinga, o prenderam e o colocaram numa viatura. Foi levado até a delegacia de Ubatuba, de lá, foi transferido para a capital paulista.

Ele contou que não deu tempo para avisar a família, que ficou sem saber de seu paradeiro, por muitos dias. Joaquim afirmou ainda, que não tinha e nunca teve, envolvimento com a política. Segundo ele, a família chorou muito após saber de sua prisão.

Joaquim relatou que foi torturado, mas que não tinha nenhuma informação para dar aos agentes da repressão. Ele alegou que não conhecia as pessoas que lhe pediram para assinar o documento. Ele lembrou que eram três jovens, possivelmente, universitários, que fizeram o documento.

Joaquim Romão lembrou que na capital ficou em uma prisão com mais de 100 pessoas. Ele afirmou que não sabia onde estava preso e nem por quê. “Passava os dias comendo e dormindo”, contou. Ele alegou não se recordar de quanto tempo ficou detido. Lembra que quando foi solto e voltou, se sentia muito envergonhado pela prisão. Ele disse, que a pedido dos policiais, não podia conversar com ninguém sobre o motivo de sua prisão.

Quando foi solto, voltou a pescar e depois, trabalhou por 24 anos no Condomínio Gaivotas, um dos mais valorizados da região, cuidando dos jardins do local. Em 2012, aos 72 anos e aposentado, tinha problemas na bexiga e, por isso, usava uma sonda. Apesar da saúde debilitada e da idade, caminhava diariamente pelas ruas do bairro, sempre sozinho.

Ele e sua família nunca foram indenizados pela prisão arbitrária e indevida. Romão contou que nunca pensou em pedir indenização pela tortura e pelos dias que ficou “injustamente” na prisão. Joaquim Romão do Nascimento faleceu no dia 27 de novembro de 2015.

Lembranças

Em 2012, conversei com os moradores antigos da Tabatinga para tentar descobrir mais sobre o episódio. Poucos resolveram falar, muitos ainda tinham receito em tocar no assunto. Como eu imaginava, quase 50 anos após o ocorrido, a cidade desconhecia a história do pescador preso e torturado indevidamente pelos órgãos de repressão.

 O comerciante Pedro de Oliveira (Foto), contou na ocasião, que seu pai, o pescador “Barra Seca” ( Pedro João de Oliveira, falecido há 52 anos), foi um dos que ajudaram a localizar Joaquim Romão, que estava preso da capital.

“Meu pai contava, que quando a polícia chegou amarrou todos os pescadores que encontravam. Assustados, os demais pescadores do bairro fugiram para as matas. Eles ficaram muito tempo escondidos, com medo da polícia, que era muito truculenta”, disse. Pedro contou que seu pai procurou um delegado do DEIC, Moraes Novaes, que era dono da Ilha do Tamanduá e frequentava muito a Tabatinga, para pescar. “Ele relatou o caso e ele se interessou em colaborar”, contou.

Outro comerciante e pescador, Olavo de Oliveira, que tinha 78 anos, em 2012, lembrou bem o episódio, mas negou ter assinado o documento dos jovens, segundo ele, “comunistas. “Era um pessoal de São Paulo que fez amizade com os pescadores e pediu para eles assinarem um documento”, lembrou. Ele não soube explicar se os jovens (possivelmente envolvidos com partidos de esquerda) estavam escondidos na Tabatinga quando houve a ação da polícia.

A mulher de Olavo, Lídia, de 73 anos, contou que os jovens “da capital”, reuniram os pescadores suas famílias na escola do bairro e pediram para eles assinarem um documento para a formação de uma associação. Ela tinha 20 anos e um filho, quando ocorreu a reunião na escola do bairro. Recorda também da ação repressora da polícia.

“Lembro que invadiram minha casa em busca das pessoas e documentos. Acho que eles (a polícia) queriam encontrar os líderes de algum movimento. A polícia recolhia papeis e até as pontas de cigarros que encontravam nas casas dos pescadores”, recordou.

Segundo ela, os pescadores, inclusive, seu marido Olavo, passaram muitas noite escondidos no mato, lá nas encostas da Praia da Figueira, temendo que os agentes da repressão viessem buscá-los. Olavo lembrou, que muita gente apanhou demais, para contar o que não sabia. “Com certeza, a polícia procurava o “chefe dos comunistas”, contou. Quando Joaquim foi solto, houve festa no bairro da Tabatinga. Segundo Lídia, seu Joaquim, após ser solto, nunca mais foi a mesma pessoa, devido as agressões e torturas sofridas durante a sua prisão.

Teatro

Lauro César Muniz contou ao “Solta o Verbo”, uma publicação feita por Hersch W. Basbaum, para a Coleção Aplauso, coordenada por  Rubens Ewald Filho, através da Imprensa Oficial do Estado de São Paul, em 2010, detalhes sobre a peça “O Líder”, sobre o caiçara Joaquim Romão, da Tabatinga, segundo ele, baseado num fato verídico.

Na entrevista ele contou que ” A minha peça era O Líder, sobre um caiçara de Tabatinga, baseado num fato verídico. Antes do golpe de 1964, a Supra (Superintendência da Reforma Agrária), ensaiando o regime sindicalista que o Jango sonhava instalar no País, criou uma assembleia para defesa dos pescadores e, naquela praia, um pescador chamado Romão era o único que sabia ler e escrever. Ao constatar que só ele sabia ler, o representante da Supra o convocou para assinar a ata de fundação daquele grupo, como presidente. Quando veio o golpe, Romão foi preso, como líder subversivo, sem que entendesse o que estava acontecendo. Apenas sabia ler e escrever. Anos depois o encontrei, por acaso, o nessa praia de Tabatinga…”

Segundo Lauro César Muniz, a peça foi feita para participar da Feira Paulista de Opinião. Seis autores foram escolhidos: Plínio Marcos(Na peça do Plínio Marcos, o Renato Consorte fazia um general que cagava fardado, dizendo uma porção de besteiras. Chamava-se Verde que te Quero Verde), Gianfrancesco Guarnieri ( chamava-se Animália e discutia a dificuldade de linguagem dos jovens com os pais. ), Augusto Boal (A do Boal era sobre o Che Guevara, uma colagem de textos do Che, do Fidel, e que encerrava o espetáculo), Jorge Andrade (A peça do Jorge era sobre uma infecção, um camponês fere a perna que vai gangrenando, sem que houvesse alguém para salvá-lo.), Bráulio Pedroso (E a peça do Bráulio chamava O
Senhor Doutor, que era sobre um empresário que começava a verter pus por todos os poros. Entrava numa banheira, tentando se limpar, mas apodrecia ali)e a dele.

Os atores decidem apresentar a peça na íntegra no dia 7 de junho de 1968, no Teatro Ruth Escobar, pois a Censura não havia se manifestado até o dia da estreia. Após a primeira apresentação a equipe é informada que o espetáculo só seria liberado após serem feitos 71 cortes nos textos. Boal e os atores se negam a fazer os cortes e apresentam o espetáculo em um ato de “desobediência civil”. Ao início de cada espetáculo Cacilda Becker lia uma carta que justificava a apresentação da feira, mesmo censurada. Nessa época, o Comando de Caça aos Comunistas (CCC) começou a baixar o pau, invadir o teatro e bater nos atores. Os atores contrataram seguranças para proteção no palco.

 

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