Projeto busca a defesa do patrimônio público sob uma perspectiva diferente: ao invés de simplesmente reprimir o seu uso indevido e ilegal, revertê-lo em benefício de toda a sociedade.
Por Jornal da PUC-SP
Aluno do curso de Especialização em Museologia, Cultura e Educação e promotor do Ministério Público do Estado de São Paulo, Tadeu Salgado Ivahy Badaró Júnior, defendeu no último dia 9, a monografia O que é a “república”? Uma investigação sobre o conceito de república na cultura dos povos tradicionais. Subsídios para o encontro da missão institucional do Museu de História, Cultura e Antropologia do Litoral Norte do Estado de São Paulo.
Orientada pela profa. Luciana Pasqualucci, a monografia apresenta o histórico de ocupação da Ilha das Cabras, situada em Ilhabela, litoral norte de São Paulo, e os mais de 30 anos de demanda judicial para corrigir algo que já havia nascido flagrantemente ilegal: a ocupação de um bem público, inserido em uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, por um particular; e os conceitos da museologia que permearam a criação do projeto Ilha Museu, de autoria de Badaró Junior, cuja implantação está em desenvolvimento com parceria da UNESCO.
Benefício a toda a sociedade
“Trata-se de um projeto que busca a defesa do patrimônio público sob uma perspectiva diferente: ao invés de simplesmente reprimir o seu uso indevido e ilegal, revertê-lo em benefício de toda a sociedade, promovendo cultura, ética e sustentabilidade, em sintonia com a compreensão mais atual do conceito de museu”, afirma Badaró.
Para a orientadora, a monografia apresenta o resultado de uma investigação sobre a forma como o conceito de “república” se expressa na cultura dos povos tradicionais e privilegia a compreensão do conceito em seu aspecto axiológico, que expressa a ideia da supremacia do interesse público e coletivo sobre o particular e individual. “O trabalho apresenta subsídios para a implantação do IlhaMuseu, sendo este uma representação do que há de mais contemporâneo no cenário da museologia e do patrimônio cultural”, defende a profa. Luciana.
Além da orientadora e do pesquisador, a banca de defesa foi integrada pelas profas. Marilia Bonas (diretora técnica do Museu do Futebol) e Claudineli Moreira Ramos (secretária de Cultura de Mogi das Cruzes ).
Na mídia
O tema da pesquisa também ganhou destaque na imprensa, na reportagem Litoral de SP terá a primeira ilha-museu do Brasil, publicada em 13/10, pela Folha de S.Paulo. Clique aqui para ler.
Monografia
Leia trechos da monografia defendida pelo promotor Tadeu Badaró
O MUSEU DE HISTÓRIA, CULTURA E ANTROPOLOGIA DO LITORAL NORTE DO ESTADO DE SÃO PAULO. DA SUA CRIAÇÃO À SUA MISSÃO
O nascimento do Museu de História, Cultura e Antropologia do Litoral Norte do Estado de São Paulo pode ser contado de duas formas: a primeira, a partir de sua origem formal e próxima; a segunda, a partir de sua origem remota, quando sequer ainda se cogitava da sua existência. Proximamente, o Museu nasceu de um acordo firmado em 2022 entre o Ministério Público do Estado de São Paulo, a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal do Estado de São Paulo e o antigo possuidor da Ilha das Cabras, ilhota localizada no canal que divide os municípios de São Sebastião e Ilhabela, no litoral norte paulista.
Seu possuidor havia sido condenado em demanda judicial movida pelo Ministério Público, em razão dos danos ambientais que praticou na ilha, decorrente de inúmeras construções ilegais por ele promovida no local. Após mais de três décadas de litígio na Justiça, finalmente chegava a hora de executar a sentença que, dentre outras obrigações, determinava que todas as construções fossem demolidas, para dar lugar a um projeto de recuperação ambiental da área degradada. Todavia, o Ministério Público, por mim representado, e a Fundação Florestal, legítima possuidora da Ilha das Cabras, acharam por bem não destruir o que lá se encontrava. Ao invés disso, decidimos pelo reaproveitamento desses bens, dessa vez para uma finalidade pública. E concluímos que um museu seria a melhor destinação possível.
Mas o que fundamentou tal decisão? Para responder a essa pergunta, necessário compartilhar algumas reflexões
desenvolvidas a partir de minha experiência como promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Meus primeiros anos de carreira no Ministério Público foram dedicados essencialmente ao combate à corrupção, assim entendido em seu sentido mais restrito: a repressão ao desvio do dinheiro público. Movido por uma compreensão de Justiça ainda ingênua, acreditava que dessa forma poderia “purificar” o exercício da política, melhorando a condição de vida de quem do Estado necessita, o que, em diferentes medidas, somos todos nós.
Com o passar do tempo percebi que esse modo de atuação, ainda que necessário, era insuficiente, me causando imensa frustração. Constatei que a intervenção meramente repressiva na defesa do patrimônio público pouco mudava a realidade. Para cada agente público desonesto punido e afastado, havia outro para substitui-lo, dotado do mesmo desprezo à coisa pública. Algo como prender o traficante de drogas na porta da biqueira.
Direcionei minha carreira, então, à defesa do meio ambiente. Dessa experiência pude compreender, contudo, que, a exemplo da atuação na tutela do patrimônio público, a defesa do meio ambiente apenas na perspectiva da repressão a ilícitos ambientais é igualmente insuficiente. E que não há solução para os desafios que se colocam para a sociedade contemporânea nesse terreno que não passe pela compreensão da importância respeito ao que é público, ou, em outras palavras, de que coloquemos os interesses coletivos à frente dos interesses particulares na organização da vida em sociedade.
Finalmente, foi da minha experiência como aluno do Curso de Formação em Agentes Políticos, ministrado pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público do Estado de São Paulo (CEAF-MPSP), em parceria com a
Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulisa (Unesp) de Araraquara, que adicionei, à estas reflexões, um desafio: Como então promover a apropriação social do valor republicano, do respeito à coisa pública, investindo em
uma atuação preventiva na tutela do patrimônio público e ambiental? Como fazer valer, de fato, o princípio da supremacia do interesse coletivo sobre o particular, a tal ponto que respeito à coisa pública se dê por um imperativo ético muito mais do que por temor à repressão jurídico-legal? Entendi que responder a esse desafio poderia me aproximar, a um só tempo, de uma atuação mais consistente na proteção do patrimônio público e mais eficiente defesa do meio ambiente. Afinal, ambas os eixos de atuação recaem, em última análise, no mesmo objetivo: a proteção daquilo que é, ou deveria ser, de todos. Pois bem. Da busca de uma resposta a essa pergunta nasceu o projeto republica, assentado na ideia fundamental do resgate de espaços públicos apropriados indevidamente por particulares, para devolvê-los a toda sociedade, na forma de um equipamento que pudesse justamente expressar a ideia da valorização daquilo que é público e que a todos deve servir. Para tanto, apostei no resgate de um bem em especial: a Ilha das Cabras, pequena ilha pertencente ao Município de Ilhabela. E por que justamente esse bem? Por que, dentre tantos espaços públicos privatizados, escolhi a Ilha das Cabras para concretizar a ideia defendida no projeto? E por que, afinal de contas, o Museu?
Bem, para responder a tais indagações, é preciso retroceder um pouco mais no tempo, para entendermos toda história da ocupação dessa ilhota e o simbolismo subjacente a ela. O histórico de ocupação da Ilha das Cabras: Em 1989, Gilberto Miranda Batista, então Senador da República, passou a ocupar a Ilha das Cabras, com a autorização da União que, de acordo com a Constituição Federal de 1988, é a proprietária de todos os territórios insulares. Como ele obteve essa autorização é uma pergunta até hoje sem resposta pois, além de um bem público, a Ilha das Cabras àquela altura já estava inserida no Parque Estadual de Ilhabela, uma Unidade de Conservação de Proteção Integral que, por essa qualidade, deveria estar na posse de seu órgão gestor, a Fundação Florestal, e não de um particular. Fato é, contudo, que Gilberto Miranda obteve tal autorização e passou a ocupar o imóvel. O que não estava permitido, todavia, eram novas intervenções na área, algo que pressuponha a obtenção de novas autorizações. No entanto, ignorando tal necessidade, Gilberto Miranda passou a realizar reformas na estrutura do imóvel, para dar lugar a uma suntuosa casa de veraneio,
onde pudesse desfrutar, privadamente, das belezas naturais daquele lugar.
Por não contar com as autorizações legais para construir, em 15 de setembro de 1989 o Município de Ilhabela embargou administrativamente as obras então promovidas no local. O embargo, todavia, foi ignorado por Gilberto Miranda, que seguiu construindo no local sem qualquer autorização. Residência de veraneio, piscina, heliporto, garagem para jet-ski, mureta de proteção e praia artificial foram algumas das construções não autorizadas constatadas em 1990 pela Secretaria de Meio Ambiente. Em razão de tais fatos, em 1991 o Ministério Público do Estado de São Paulo ajuizou Ação Civil Pública ambiental em face do então Senador da República Gilberto Miranda, tendo como fundamento os danos ambientais por ele praticados na Ilha das Cabras. Pleiteou, em caráter liminar, a interrupção de todas as obras em andamento na ilha. Em 06 de maio 1991, o Juízo da Vara Distrital de Ilhabela deferiu a liminar pleiteada, proibindo a continuidade das obras. A partir de então, iniciou-se um longo caminho marcado por diversos atos de litigância de má-fé praticados por Gilberto Miranda. Ocultações e recusas em receber a citação do oficial de justiça com uso do aparato estatal que o cargo de Senador da República lhe conferia e a transferência meramente formal da autorização concedida pela União para pessoas físicas ou jurídicas de fachada, como meio de dissimular seu vínculo com o imóvel, foram alguns dos artifícios utilizados pelo ex-Senador para procrastinar o feito e se eximir de sua responsabilidade. Concomitantemente a isso, a liminar era ignorada com o prosseguimento e conclusão das obras embargadas e deflagração de outras novas, incluindo sucessivas reformas nas residências, construção de deck, ampliação do heliporto e da piscina de água salgada.
A Ação Civil Pública ambiental seguiu morosamente seu curso, atingindo a fase de produção de provas, quando novas dificuldades foram enfrentadas pelo Poder Judiciário. Apresentado o laudo pericial determinado pelo juiz, o trabalho foi recusado pelo Magistrado sentenciante por reputá-lo “francamente tendencioso”, dentre outras razões, porque, segundo o Juiz: o perito deixou, deliberadamente, de falar sobre a praia artificial ali construída, o deck que causou o sombreamento da encosta afetando a biota, o concretamento de uma área significativa para permitir o pouso de helicópteros (já pousaram seis, simultaneamente), bem como o impacto de 100 toneladas de húmus (trazidos de um minhocário e lançados em toda a ilha) sobre a fauna e flora existente no entorno daquele acidente . A sentença judicial, datada de 04 de agosto de 2000, teve então que se apoiar em uma segunda perícia, para finalmente condenar o então requerido Gilberto Miranda e suas empresas Humana S/A e Bourgainville (ou Bougainville) Representação e Participações Ltda. ao pagamento de indenização correspondente ao valor total da recomposição da Ilha das Cabras, ao pagamento de multa em razão do descumprimento da liminar, à demolição de todas as obras construídas depois da concessão da liminar e, ainda, ao pagamento de indenização por litigância de má-fé. A decisão foi confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, tanto quanto à responsabilidade ambiental, quanto em relação à prática de litigância de má fé.
Diante do insucesso do recurso em segundo grau de jurisdição, Gilberto Miranda recorreu aos Tribunais Superiores.
Todavia, enquanto os recursos tramitavam no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal, foi deflagrada a “Operação Porto Seguro”, conduzida pela Polícia Federal, que desnudou a existência de um grupo de servidores públicos federais reunidos criminosamente justamente para favorecer o ex-Senador e sua empresa Bourgainville Representação e Participações Ltda. na ocupação da Ilha das Cabras. Desta operação decorreu o ajuizamento, pelo Ministério Público Federal, de uma ação de improbidade administrativa e de uma ação penal por crimes de quadrilha, corrupção ativa e corrupção passiva, tornando réus Gilberto Batista Miranda e os demais partícipes dos atos ilícitos.
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De acordo com a inicial da ação de improbidade administrativa, um grupo que incluía o então adjunto do Advogado-Geral da União (AGU) e servidores da Secretaria do Patrimônio da União (SPU) atuou em duas frentes para defender os interesses particulares do ex-Senador: na SPU e na AGU, para tentar garantir a Gilberto Miranda o aforamento gratuito da Ilha das Cabras, a fim de permitir a exploração econômica do imóvel; e na AGU, para garantir o ingresso da União na Ação Civil Pública ambiental com o intuito de obter a anulação das decisões da Justiça Estadual que haviam sido desfavoráveis ao ex-Senador. O plano somente não funcionou porque a estratégia veio à tona em grampos telefônicos realizados pela Polícia Federal na Operação Porto Seguro. Assim, a sentença que o condenava a desfazer todas as construções e recuperar os danos ambientais praticados na Ilha das Cabras se tornava definitiva e poderia finalmente ser executada. Novo fato, todavia, veio a obstar a execução da sentença: o desaparecimento do 9º volume dos autos, exatamente aquele no qual encartado o Acórdão do Tribunal de Justiça em que constava a decisão a ser executada, algo que certamente somente foi possível com o auxílio criminoso de servidores públicos lotados na Justiça paulista.
Superado mais este obstáculo por meio da restauração dos autos, foi determinada a realização de uma nova perícia, que tinha por objetivo simplesmente delimitar quais intervenções ilegais e ambientalmente danosas deveriam ser desfeitas, bem como qual o valor da indenização a ser pago. Estranhamente, contudo, sobreveio um novo laudo pericial bastante tendencioso e favorável ao ex-Senador, que fazia uma defesa da beleza cênica da Ilha das Cabras e sugeria a manutenção das intervenções para proveito do próprio degradador. Novamente foi necessário que o Poder Judiciário determinasse a realização de uma outra perícia que, então, finalmente pormenorizou todas as intervenções que deveriam ser desfeitas e calculou o valor a ser pago a título de indenização. Concomitantemente a isso, Gilberto Miranda sofria nova derrota na Justiça, com denegação de um Mandado de Segurança que havia impetrado no Superior Tribunal de Justiça com intuito de obter uma decisão que lhe permitisse seguir ocupando o imóvel insular. Preenchia-se, assim, finalmente, todas as condições jurídicas para que o invasor pudesse ser retirado do local e obrigado a arcar com suas responsabilidades, pelo menos quanto aos danos ambientais praticados.
O saldo de toda essa odisseia? Mais de 30 anos de demanda judicial para corrigir algo que já havia nascido flagrantemente ilegal: a ocupação de um bem público, inserido em uma Unidade de Conservação de Proteção Integral, por um particular. É, portanto, por todos esses contornos que essa demanda judicial assumiu um especial simbolismo: do meu ponto de vista, ela é a síntese uma série de flagelos que condenam nosso país ao atraso. Corrupção, apropriação privada de bem público, uso de cargos públicos para práticas criminosas, morosidade da Justiça, aplicação desigual da lei para ricos e pobres e descaso com o patrimônio ambiental e cultural do país são alguns desses flagelos simbolizados por esse caso.
Por isso, a Ilha das Cabras. E por isso, o museu. Para transformar esse símbolo do atraso em algo que irradie valores inversos aos que sempre representou: o de respeito à coisa pública, de igualdade de todos perante a lei, de imposição de justiça e de valorização do patrimônio ambiental e cultural. Julguei, assim como os representantes da Fundação Florestal, que, mais do que a recuperação dos ecossistemas naturais da Ilha das Cabras, a transformação do local em um espaço de ampla visitação pública, que propagasse a ideia do bem comum e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, promovendo cultura e respeito ao meio ambiente, traria ganhos maiores e potencialmente multiplicadores. Daí a origem remota do museu. E daí, também, por que a missão fundamental do novo museu é justamente essa: a de falar de bem comum, de coletivo, de espírito público. E, para concretizá-la, chamamos a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para nos auxiliar, confiando à sua equipe de museologia o desafio de tornar a Ilha das Cabras um polo de propagação desses valores.
O desafio, prontamente aceito, já consta, inclusive, da Nota Conceitual elaborada pela Unesco para subsidiar a construção do novo espaço. O projeto de criação do Museu de História, Antropologia e Cultura do Litoral Norte será desenvolvido pelo Setor de Cultura da UNESCO, com apoio do Setor de Ciências Naturais, dada sua expertise no desenvolvimento de projetos no âmbito do patrimônio cultural e desenvolvimento sustentável, com ênfase em museus e, considerando, segundo entendimento do Ministério Público, o “conceito amplo de meio ambiente ecologicamente equilibrado, abarcando as noções de meio ambiente natural, cultural, artificial (espaço urbano) e laboral, nos termos da jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal”, de modo que, para além do aspecto de recuperação do meio ambiente natural, devem ser considerados, no caso concreto, os aspectos de “conhecimento, valorização, proteção e promoção da história e cultura dos diferentes grupos formadores do Litoral Norte, resguardando o patrimônio histórico e cultural da região para as gerações presentes e futuras”, bem como de valorização de práticas que estejam em consonância com o princípio da supremacia do interesse público e coletivo sobre o interesse particular.