Por Raquel Salgado
No próximo dia 24, o Conselho Municipal de Políticas Culturais de Caraguatatuba – CMPCC, votará a proposta de tombamento de dois núcleos históricos da antiga Fazenda São Sebastião, localizada na região sul de Caraguatatuba.
História que, próxima de completar 100 anos, permanece viva no coração dos moradores. Em 1992, o primeiro pedido de tombamento foi encaminhado ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo – CONDEPHAAT, pelos vereadores Ilson Vitório, de Caraguatatuba; e João Siqueira, de São Sebastião. A proposta foi rejeitada porque o conjunto tinha interesse “apenas regional” e não estadual…
Hoje conhecida como Fazenda Serramar, a área ficou cravada na memória popular como Fazenda dos Ingleses. A proposta atual foi apresentada pelo arqueólogo e turismólogo Clayton Galdino, que a justifica pela “importância histórica, memorial e afetiva relacionada às trajetórias econômicas, urbanas e sociais de Caraguatatuba e região”.
Galdino cita ainda “as potencialidades educacionais, artísticas e econômicas do uso adequado destes testemunhos, em especial no turismo, lazer, habitação e equipamentos culturais e artísticos”. Por fim, alerta para “o risco de perda definitiva deste patrimônio pelo abandono, arruinamento e impactos deliberados que porventura possam existir”.
Ingleses
Uma das três maiores fazendas do gênero na América Latina, a Fazenda dos Ingleses (1927 a 39) tinha quatro mil alqueires de terras na grande planície entre Caraguatatuba e São Sebastião.
Em seu auge, 1930, cultivava quatro milhões de pés de banana e laranja, exportados diretamente para Londres em navios ingleses que fundeavam no Canal de São Sebastião.
Em seu interior, 120 quilômetros de linhas férreas escoavam a produção até o cais no Rio Juqueriquerê, onde era embarcada em chatões e levada para embarque nos navios.
O empreendimento atraiu mão de obra de toda a região, desde Angra dos Reis até Santos, incluindo Paraibuna. Eram quatro mil trabalhadores residentes. Provocou aumento da população, dos meios de comunicação, incremento ao comércio, e aumento das receitas municipal, estadual e federal. E colocou Caraguatatuba no mapa das exportações brasileiras.
A fazenda possuía quadras de tênis, campos de golfe e polo, cinema, e promovia campeonatos de futebol que reuniam até trinta times.
A decadência veio com a 2a. Guerra Mundial (1939/45), e com a catástrofe de 18 de março de 1967, quando uma tromba d’água na serra soterrou as plantações e quase destruiu Caraguatatuba, provocando a morte de mais de três mil pessoas.
Na década de 90 ela foi comprada pelo grupo Serveng, que lá instalou a Serramar, projeto pecuário de alta tecnologia. Hoje abriga também o parque de tancagem de gás da Petrobrás, shopping Serramar e o Hospital Regional.
Dois núcleos
O tombamento abrange dois núcleos. O primeiro ao lado da escola estadual e da rodovia, que deu ao bairro o nome de Porto Novo: casas da vila de trabalhadores, dos chefes, galpões, cais de 100 m do porto no Juqueriquerê, e área de vegetação e mangue – único núcleo abrangido pelo pedido de tombamento anterior.
Ali existem nichos de vegetação que poderão se transformar num parque municipal e casas em diferentes graus de preservação.
O segundo núcleo está dentro da Serramar. Na época não esteve na rotina da comunidade, mas foi palco de eventos culturais. Era a antiga área residencial dos ingleses, hoje conhecida como “castelinho”, localizada no alto de um morro, bem em frente a entrada da fazenda. Inclui o trecho de estrada que permite o acesso ao morro.
Considerados sítios arqueológicos, ambos estão também com pedido de cadastramento junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Arqueológico Nacional – IPHAN.
Tombamento
Com apoio da Associação Caiçara do Juqueriquerê – ACAJU, entidade que atua em rede com várias ongs locais, a proposta de tombamento foi protocolada e vem sendo discutida no Conselho desde dezembro passado.
A Serramar, notificada desde o início, participa das discussões desde a última reunião do Conselho. A empresa parece sensível à sua importância histórica pois patrocinou em 2012 livro e documentário sobre o assunto: “Grape Fruit com Banana”. Trabalho da historiadora Glória Kok.
“O tombamento não exclui a propriedade das áreas, apenas indica usos compatíveis com a preservação da memória. Prevê o restauro da fachada das construções e manutenção de sua volumetria, permite novas edificações desde que sigam estas normas, abertura das ruas internas – antes Rua do Porto, Rua dos Maritimos… – para que sejam novamente integradas ao bairro”, explica Galdino.
“Os dois núcleos possuem alto potencial turístico, econômico e cultural. A preocupação é preservar seu aspecto paisagístico, arquitetônico e histórico”, diz ele.
Inserido entre bairros carentes de estrutura urbana de lazer, serão salas de aula a céu aberto, centro cultural, apoio ao turismo náutico, aos pescadores locais e à pesca esportiva.
O protocolo do tombamento prevê a proteção preliminar das áreas. Prefeitura e Fundação Cultural – FUNDACC foram notificadas para providências de fiscalização e fomento.
A preservação de todo este patrimônio também está prevista no Plano Municipal de Cultura até 2027, ano do centenário da antiga Fazenda dos Ingleses, quando o município tem que dar um destino público a estas áreas.
Patrimônio imaterial
Trata-se de um conjunto de várias manifestações intangíveis, como os ofícios das comunidades tradicionais, caiçaras, indígenas e quilombolas, festas religiosas, até receitas culinárias.
No caso da Fazenda dos Ingleses, objeto de vários livros já publicados, sua enorme influência ainda hoje permeia a cultura local. A poucas décadas, um jardineiro da região, analfabeto, referia-se a lanterna como “flash light”; e ao castelinho como “masters”, a residência dos chefes ingleses…ele havia crescido na fazenda…
“Trata-se de um anseio da comunidade e tem forte apelo emocional. O tombamento traduz o sentimento de muita gente, moradores, ex funcionários, seus filhos e netos”, diz Clayton Galdino, ele próprio neto de um antigo trabalhador da fazenda.
“Este é um processo democrático e o tombamento é apenas o primeiro passo. Nossa expectativa é que a partir dele se instale um diálogo constante entre a Serramar e a comunidade quanto aos usos da área”.
“Que a Serramar olhe para a História de Caraguatatuba”, finaliza.